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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

EVANGÉLICOS NÃO-CRISTÃOS


Pode parecer uma incoerência, mas não o é. Há muitos que declaram ser evangélicos e negam em suas vidas e pregações o que os evangelhos ensinam. Mas, antes de mais ada, precisamos conceituar os termos. Evangélico vem de evangelho, palavra que tem sua origem no grego neotestamentário (euangelión) e que significa “boas novas”. Curiosamente, ela foi originalmente usada até para o anúncio da vitória militar trazida por um mensageiro. Também se sabe que a palavra era usada para se referir a qualquer boa nova, independentemente da natureza ou do contexto onde a mesma estava inserida. Só mais tarde é que os escritores do Novo Testamento, ao fazerem dela uso, começaram a restringir o seu significado para se referir a Jesus Cristo e ao anúncio da salvação.
Estrita e morfologicamente falando, qualquer boa nova é euangelión e, por conseguinte, anunciar boas novas é evangelizar, não importa o campo em que tal boa nova pertença. Também se refere ao conteúdo conhecido como evangelhos. E mais contemporaneamente, o termo “evangélico” se refere aos que “pautam suas vidas pelos ensinamentos dos evangelhos”. Uma denominação evangélica seria, portanto, aquela que tem nos evangelhos a sua Carta Magna e referência maior para os valores e práticas da vida. Ser evangélico é ter nos quatro escritos o parâmetro para avaliar todos os demais livros, até mesmo os que estão na Bíblia.
Os anabatistas mais radicais acreditam e ensinam que há uma gradação na revelação que está nas Escrituras: Palavra de Deus é o que Jesus falou, o que Ele ensinou e isto está nos evangelhos. Todos os demais escritos bíblicos são Palavra de Deus desde que concordem com os que Jesus falou e ensinou. Note-se que, nesta visão radical do evangélico, há coisas bíblicas que não são evangélicas, porque vão contra os ensinamentos de Jesus. Os textos que falam da guerra são informativos e não normativos. Seguir a Cristo é seguir ao que dEle se sabe e conhece e descartar o que contra Ele e seus ensinamento se colocam.
Ora, se um “evangélico” prega a ira, o racismo, a beligerância, o armamento, pode ele ser considerado um evangélico e cristão? Se um “evangélico” defende a tortura e cultua um torturador, pode ele ser considerado evangélico? Se o Sermão do Monte é parte central nos ensinos de Jesus, pode ser cristão quem os nega e ensina o que vai contra os ensinamentos do Sermão do Monte? Pode ser o guerreiro um pacificador? Pode ser cristão quem promove o armamento, se envolve sistematicamente em corrupção, desvia verbas da merenda e a saúde? É cristão quem tem a ira como a essência do viver? Como achar que é evangélico quem não aceita e nem pratica a recomendação de “amar os inimigos” e “dar a outra face a quem bateu”? Se o evangelho é o anúncio da graça, é evangélico quem vende bençãos?
Tudo o que não é amor a Deus, ao próximo e a si mesmo (não no sentido egoísta e narcísico, mas no sentido de zelar pela própria vida) não pode ser considerado cristão e nem evangélico. Esta foi a resposta de Jesus quando perguntado qual era o maior dos mandamentos. O verdadeiro cristão se conhece pela sua dedicação ao próximo e seu ministério para empoderá-lo, suprindo suas necessidades, aconselhando, dando agasalho, conforto e norte para a vida. Evangelizar é dar sentido a vida do outro, é dar a dimensão de eternidade para quem está na depressão, é ar a esperança de melhores dias pela solidariedade e justiça
Marcos Inhauser

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

TEXTO MAGNO DO EVANGELHO

Filho de protestantes, fui criado na tradição calvinista, estudei teologia em seminário arminiano, fiz complementação em seminário calvinista. Tinha meus pruridos com algumas questões que me ensinavam sobre os reformadores, especialmente o conceito de guerra justa e a justificação da violência. Vários anos mais tarde, entrei em contato com o Anabatismo, ramo pertencente à Reforma Radical (e por, isto, também reformado).
Nele via uma nova abordagem para as questões que me intrigavam e enumero algumas delas. O Antigo Testamento apresenta a guerra como sendo, muitas vezes, promovida por Deus. Daí que algumas guerras eram chamadas de santas. Há uma condescendência com a violência e o menosprezo da mulher e da criança como seres humanos. Além desta aparente divinização da guerra, há o uso da violência da parte de Deus no castigo do seu povo. Estas abordagens me faziam pensar e, por mais que tentasse, não encontrava respostas.
Ao ler os Anabatistas e tomar conhecimento de sua história (ainda que não haja unanimidade entre eles), fui tomando conhecimento de algumas posições que me chamaram a atenção e mudaram minha forma de ver as coisas.
A primeira delas é a centralidade dos evangelhos e de Jesus Cristo. Há uma certa hierarquia nas Escrituras: as palavras proferidas por Jesus estão acima de todas as outras. Em seguida o que se conta sobre Jesus. Os demais trechos da Bíblia são palavra de Deus na medida em que se harmonizam com Jesus e o que Ele disse e ensinou. A fundamentação para isto está no fato de ser Jesus a “Palavra de Deus encarnada”, a “expressão exata do ser de Deus”, ao ponto de ser “Um com o Pai”. Esta hierarquia toma como Palavra de Deus, no caso do Antigo Testamento, aquilo que concorda com os evangelhos. O que não concorda pode ser texto de consolação, de instrução ou de informação de como foram ou eram feitas as coisas. Perdem assim o caráter normativo, assumindo o instrutivo.
Neste contexto, ganha relevância o Sermão do Monte, proferido por Jesus e que é tomado por muitos Anabatistas como texto magno para a vida cristã.
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus (fora estão os orgulhosos, prepotentes e assemelhados)   
Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados (fora estão os que fazem chorar, que provocam lágrimas pela imposição da injustiça e da violência).   
Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra (fora estão os violentos, os agressores, o que promovem a violência, a guerra, que negam a virtude do diálogo)   
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos (fora estão os que fazem injustiça, concedem habeas corpus a torto e a direito)   
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. (fora estão os que massacram o próximo ou tiram proveito dele em uma situação de dificuldade)   
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus (fora os que tem agenda oculta, caixa dois, negam desconhecer o que praticaram, mentem, os cara-de-pau, os pinóquios políticos).   
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus (fora os promotores da violência, do armamento, das guerras, da vingança, das fake News).   
Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus fora os que estão perseguindo em nome da justiça e os que se julgam perseguidos porque a eles se aplica a justiça).
Sei que vou levar pedrada por causa deste texto. Termino com a última: Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa.   
Marcos Inhauser

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

ANABATISTAS E O SERMÃO DO MONTE

Na minha caminhada de teologia e igreja, percebi que muitos, como eu durante meus primeiros anos, têm pouca ou nenhuma informação sobre o movimento da Reforma Radical (Anabatistas) e suas contribuições para a teologia reformada.

Uma característica bastante forte na maioria dos grupos anabatistas (Menonitas, Irmandade e Quakers) é a forte ênfase na obediência aos princípios presentes no Sermão da Montanha e mais especialmente nas Bem-aventuranças. Fruto disto é o compromisso radical de vários grupos anabatistas com questões relacionadas à paz e ao ser pacificador. Há várias histórias sobre este compromisso radical.

Uma delas é a relatada no Livro dos Mártires (Mundo Cristão, 2011). Um anabatista estava sendo perseguido por um soldado que o levaria preso e à morte por ser anabatista. Ao cruzar um rio congelado, o gelo se trincou com os passos do anabatista e o soldado, que veio no seu encalço, se afundou no rio gelado. O anabatista voltou, o ajudou a sair do rio e em seguida o soldado o levou preso e à morte. Obediência radical.

Outra história se deu nos Estados Unidos no período da colonização. Durante os anos imediatamente anteriores à Guerra de Independência, alguns da Irmandade se mudaram para uma área na Pennsylvania, chamada Morrison Cove. Ali, com outros colonizadores brancos, começaram a trabalhar na agricultura. Em novembro de 1777, os indígenas atacaram quem estava em Cove. Os da Irmandade não fugiram, nem lutaram contra eles. Cerca de 30 personas da Irmandade foram mortas. À medida que atacavam, os da Irmandade diziam em alemão Gottes Wille sei getham. (“a vontade de Deus seja feita”). Os indígenas se impressionaram com a maneira como suportavam o sofrimento, sem revidar. Muitos anos mais tarde, os antigos indígenas perguntaram se os “Gotswilthans” ainda viviam em Cove. Era a maneira como se lembravam da Irmandade.

Nestes dias, a Igreja da Irmandade da Nigéria deu mais um exemplo concreto de obediência radical. Grande parte das meninas raptadas em uma escola (mais de duzentas) pelo Boko Haran (grupo terrorista que se afirma muçulmano) pertencia à Irmandade. Agora, “no processo de reconstrução de suas vidas após os ataques dos terroristas do Boko Haram, irmãos e irmãs da Igreja da Irmandade na Nigéria (Ekklesiyar Yan’uwa a Nigeria) decidiram reconstruir também suas relações com seus vizinhos muçulmanos. Esse processo não se deu somente através do reestabelecimento do diálogo e da convivência pacífica, tão comuns antes do terror e da divisão imposta pelos terroristas. Eles incluíram em seu projeto a reconstrução de uma mesquita queimada pelo Boko Haram, impactando profundamente os líderes e a comunidade muçulmana local. Decididos a seguir o exemplo de Jesus em sua radicalidade, eles literalmente deram a outra face, não pagaram o mal com o mal, expressando a regra de ouro em sua forma mais concreta: "Portanto, tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles." (Mateus 7:12)” (dados fornecidos pelo Rev. Musa Mambula, um dos líderes da Igreja da Irmandade na Nigéria).

É também a aplicação concreta dos ensinamentos bíblicos: "Vede que ninguém pague a outro mal por mal. Antes, procurai sempre praticar o bem entre vós e para com todos." (1Ts 5:15) e “procurai a paz da cidade, para a qual fiz que fôsseis levados cativos, e orai por ela ao Senhor: porque na sua paz vós tereis paz." (Jr 29:7).

Como cristão não entendo como há quem apoie quem promove o armamento, a guerra, a violência, etc. Quem é cristão promove a paz!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A REFORMA PROTESTANTE E A POLÍTICA

No dia 31 de outubro de 1517 o monge agostiniano, Martinho Lutero, afixou na porta da Catedral de Wittemberg 95 teses que queria discutir com a comunidade acadêmica e que versavam sobre a autoridade papal para perdoar pecados e vender indulgências. Este fato é tido como o ponto inicial do movimento da Reforma Protestante do século XVI.
Lutero foi seguido por Calvino, quem foi o Reformador de Genebra, onde estabeleceu uma nova forma de governo, formado pelo Consistório, um modelo mais representativo de participação popular no governo da cidade.
Em Zurich surgiu Zwínglio. Como ponto central da reforma estava o fato de que as Escrituras, e somente elas, são obrigatórias aos crentes e normatizam a vida de fé e prática. Zwínglio cria que a comunidade era a palavra final na interpretação das Escrituras, criando um conceito que mais tarde veio a se chamar “comunidade hermenêutica”. Com esta posição Zwínglio estava sentando as bases para o movimento da Reforma Radical, também conhecido por Anabatismo, onde, em suas raízes, não tinha um pregador-que-sabe-que-ensina-quem-não sabe, mas pela participação de todos, se constrói a interpretação.
Três dos seus seguidores estavam inconformados com a falta de coragem de Zwínglio em levar às últimas conseqüências as afirmações que sustentava. Acreditavam que o batismo, por ser um ato de fé, só pode ser feito por quem tenha consciência do ato. Zwínglio assim creu e ensinou, mas depois, por pressão do Conselho da cidade, recuou.
Os Radicais negavam a validade da prática do batismo infantil. Estes três discípulos do reformador Zwínglio, Blaurock, Grebel e Mantz, decidiram se rebatizar. O fato teve profundas implicações políticas, porque ao se rebatizarem, estavam negando o poder estatal de decidir a religião dos súditos, afirmando que a fé é uma questão de foro íntimo e que ninguém pode decidir por alguém qual a religião que irá seguir.
Como consequência, passaram a pregar a separação da igreja e do estado, fato revolucionário em uma época em que a Igreja Católica era um estado, em que Lutero e Calvino estavam vinculados ao estado seja para proteção ou para governo, e Zwínglio estava em caminho parecido ao dos demais reformadores.
Os anabatistas foram perseguidos por suas posições revolucionárias e fugiram de uma parte a outra da Europa, em busca de regiões onde os reis os tolerassem. Desenvolveram a ética do trabalho, sendo exímios lavradores, forma encontrada para evitar que fossem constantemente expulsos, por causa dos lucros que traziam.
O conceito de separação da Igreja e do Estado foi ganhando força e hoje é aceito na quase totalidade dos países do mundo ocidental. O modelo constitucional norte americano da completa separação está influenciado por anabatistas e não é coincidência que a declaração de independência tenha sido feita na Pennsylvania, terra então majoritariamente habitada por menonitas, quackers e irmandade.
Trago estas coisas históricas por duas razões: estamos comorando mais um aniversário da Reforma e mais do que nunca estes princípios de separação da igreja e estado precisam ser relembrados, em um momento em que setores da igreja evangélica brasileira se envolvem com a política, transformam púlpitos em palanques e têm projetos de criar um estado religioso de fundamentação cristã/evangélica, deputado evangélico está envolvido em corrupção, a bancada evangélica acha que dar uma Bíblia ao presidente é evangelizar, pastores vivem mendigando benesses do poder público para a reforma do templo ou a cessão de um terreno, etc.
Isto é negar um dos elementos basilares da Reforma: Igreja é Igreja, Estado é Estado. A Igreja pode e deve ter uma atitude profética para com o Estado, denunciando os pecados existentes e os cometidos por ele. Para fazer isto, não pode ter o rabo preso.
Marcos Inhauser


quarta-feira, 18 de outubro de 2017

REFORMA E OS RADICAIS

Transpiração e inspiração são irmãs gêmeas do processo criativo. Uma descoberta, para ter impacto, deve responder à algumas condicionantes históricas. Newton, Thomas Edison, Pascal e outros, fizeram descobertas que não eram totalmente novidade, mas tinham antecedentes nas pesquisas, descobertas e pensamentos anteriores.
No campo da Reforma religiosa do século XVI, Lutero também não pode ser apontado como alguém que teve todas as idéias que o motivaram a posicionar-se da forma como o fez, mas Wycliffe, os Valdenses, Albingenses, os Cátaros, John Huss, Savanarola são comumente citados como antecessores da Reforma.
Mais que isto, a “descoberta” de Lutero que a justificação do pecador se dá pela fé e esta é obra da graça de Deus, só foi possível porque teve acesso a pensamentos divergentes da teologia oficial e porque esta descoberta teve ambiente histórico, econômico e político para ser aceita larga e amplamente como resposta esperada pela população, tendo em vistas as opressões que sofriam do senhor feudal e da própria igreja através de suas autoridades. Não fossem dadas estas circunstâncias históricas, Lutero, Calvino, Zwínglio e outros talvez não teriam sido quem foram.
Estranha-me que, quando se fala em Reforma, os assim autodenominados reformados, ser esquecem de mencionar uma importante ala da Reforma, que fez com que ela avançasse para além dos limites que Lutero, Calvino e Zwínglio avançaram; a Reforma Radical promovida pelos Anabatistas. A separação da Igreja do Estado, a liberdade de culto e consciência, a opção livre e espontânea para a escolha da fé, foram feitos que os Anabatistas trouxeram. Estes postulados hoje são conditio sine qua non para a vida religiosa, mas há muitos que se esquecem que devem isto aos radicais.
Entender esta dimensão histórica e as condicionantes políticas e econômicas do contexto em que tal se deu, é fundamental. Talvez seja por isto que há quem, hoje em dia, não entendendo estas implicações, querem reproduzir a Reforma do século XVI em pleno século 21.
Tendo isto em mente se deve entender a expressão reformada que se tornou bandeira, ainda que na prática quase nada tem acontecido: Igreja Reformada sempre reformando.
Neste 31 de outubro a igreja reformada e protestante estará celebrando os 500 anos da Reforma, uma pergunta deve estar na mente: o que mudou na igreja reformada nestes anos? Não são as igrejas reformadas réplicas de práticas seculares e, portanto, defasadas no tempo e inócuas nas respostas aos cidadãos do século 21?
Aqui, me parece, reside uma das questões que as igrejas reformadas (e também a católica) devem analisar quando avaliam os problemas pelos quais estão passando, que se traduz na perda de membros e frequência, na falta de vitalidade e no pouco envolvimento de seus membros: está a igreja respondendo às questões das pessoas que vivem no mundo atual? Ou está a igreja repetindo respostas de centenas de anos, que se foram próprias naquele momento, hoje nada dizem?
Há os que pedem uma nova Reforma. Estariam eles dispostos a uma ruptura radical com o atual modelo? Não são muitos destes, pessoas que pedem reforma, mas a querem para reforçar o que já fazem há séculos?
Marcos Inhauser

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

DEPOIS DE QUINHENTOS ANOS

É significativo que as duas maiores transformações da sociedade ocidental tenham suas origens em acontecimentos religiosos cristãos: o nascimento de Cristo e a reforma religiosa do séc. XVI que neste 31 de outubro completa quinhentos anos.
Uma visão simplista deste segundo evento o considera como sendo de conotação espiritual, um agir do Espírito para a retomada dos valores do cristianismo dos quais a igreja havia se desviado, algo que aconteceu porque o monge Lutero recebeu uma iluminação especial.
Isto é verdade, mas não toda a verdade. A Reforma não teria sido o que foi se tivesse se limitado aos pensadores (sacerdotes e filósofos) e à nobreza. Ela teve impacto porque teve apoio popular.
Este apoio se deu mais por razões políticas que por convicções religiosas. A sociedade europeia do séc. XVI era feudal (baseada na iníqua equação de direitos da nobreza e deveres da plebe), onde os pobres tinham chances quase nulas de reverter sua situação pela obtenção de salários mais justos, pagamento de menos impostos ou acesso à propriedade.
Lutero, ao atacar o poder papal de decretar indulgências (perdão de pecados que eram vendidos para financiar a pompa papal e a construção da catedral de São Pedro), atacou também o poder de excomunhão, que era o instrumento político usado pelo Vaticano para submeter a população e a nobreza, mantendo assim o estado feudal que tanto lhe interessava. Desde cedo o povo percebeu que as teses de Lutero eram revolucionárias porque podiam reverter o quadro social, político e econômico em que viviam.
A análise mais atenta da Reforma mostra que este engajamento popular permitiu que se reformasse não só a religião vigente, mas a sociedade. Assim, a Reforma só foi um evento significativo porque mexeu também com as estruturas sociais.
As propostas de reforma social partiram não de formulações filosóficas ou econômicas, mas do compromisso em obedecer ao princípio reformado de “Sola Scriptura”.
Ao fazerem mudanças na ordem política e econômica, o fizeram a partir da visão teológica sobre a injustiça e o pecado. Calvino, em Genebra, criou a assistência semi-estatal para os inválidos, doentes e velhos, promoveu a luta contra a imoralidade, fiscalizou os preços, regulamentou o trabalho, estabeleceu feriados e a guarda do domingo, promoveu a educação (André Bielér. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. S. P.: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 102).
O mesmo se pode dizer dos reformadores radicais, os anabatistas. A partir da convicção de que as questões de fé são de foro íntimo e que ninguém pode decidir o que o outro deve crer, defenderam o batismo de adultos como forma de se respeitar o princípio e negaram o poder estatal de decidir qual a religião que os súditos deveriam ter. Como consequência disto, nascem os conceitos de liberdade de consciência e a separação da Igreja e do Estado. Na sua vertente mais radical, Tomas Muntzer promove a guerra dos camponeses para que estes tivessem acesso à terra.
Vivemos uma situação social de excludência da maioria, atirada à pobreza por mecanismos econômicos injustos, onde verbas sociais são cortadas para financiar bancos falidos, o perdão dos pecados é vendido juntamente com as bênçãos da prosperidade.
Mais do que nunca é necessário que a igreja olhe para sua história que ensina o erro de se vender a benção (seja perdão de pecados, cura, libertação ou prosperidade), de crer em revelações extra-bíblicas trazidas pelos iluminados de plantão autointitulados de profetas e profetisas, deve combater com o compromisso da “Sola Scriptura”, da “Sola Gratia”, “Sola Fide”, “Soli Deo glori” e “Solus Christus”.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A CONTRIBUIÇÃO DA TEOLOGIA DA PAZ

Em minha última coluna, na qual questionava a extensão e protagonismo da Reforma Protestante de dos Reformadores Lutero e Calvino, colocava a participação essencial da Reforma Radical, que produziu o movimento Anabatista. Salientava as inúmeras contribuições que a teologia anabatista fez para a igreja ao redor do mundo, algumas delas que são hoje verdades inquestionáveis (separação da Igreja e do Estado, a Igreja como associação espontânea e não por decisão autoritária, entre outras).
Adiciono outra contribuição anabatista, para mim, da mais alta importância: a teologia da paz. Há que se recordar que Lutero, ao ser excomungado e perseguido, refugiou-se e foi sustentado pelo rei Federico o Sábio, quem o levou para o Castelo de Warburg e ali o refugiou. Calvino escreveu suas Institutas de Religião Cristã e as dedicou ao rei Francisco I. Tanto um como o outro nunca se posicionaram contra a “guerra justa”, como se alguma o fosse justa.
Os anabatistas foram, como não poderiam deixar de ser dada sua radicalidade, veementes na condenação da guerra, não aceitando que nenhuma delas fosse justa, por mais razões que se apresentem. Dois motivos podem ser apontados para este posicionamento radical: a compreensão literal dos ensinamentos de Jesus com a obediência radical dos seus discípulos e a situação política vivida por eles. Deve-se recordar que, minoritários em um contexto amplamente contrário às suas teses, perseguidos e empobrecidos pelas constantes mudanças, fugas e expropriações, não poderiam, sob pena de suicídio coletivo, pregar o uso da violência como forma de se resolver conflitos.
É verdade que houve a Guerra dos Camponeses, liderada por Thomas Muntzer, que se declarava anabatista, mas que não era reconhecido como tal pelos líderes sobreviventes e hoje se tem consenso de que sua inspiração para a fomentar a guerra não eram os ideais anabatistas. Pelo contrário, muitos dos grupos perseguidos encontraram guarida em outros locai, foram amparados por reis mais condescendentes e uma razão para isto era o caráter laborioso e pacífico dos anabatistas.
Como decorrência deste seu postulado pacífico e pacifista, também se dedicaram ao estudo e à prática de processos de resolução de conflitos e mediação, sendo hoje reconhecidos como grandes autoridades no assunto. Projetos de pacificação social, de reconciliação entre vítimas e ofensores, de resolução de conflitos familiares, eclesiais, laborais e de vizinhança se multiplicam por todo o mundo sob o impulso das igrejas anabatistas.
No desenvolver e amadurecer destas ideias pacíficas e pacificadoras, aos anabatistas se valeram em grande escala da interpretação literal e contextualizada do sermão das Bem-aventuranças, também conhecido como Sermão do Monte. Vários estudiosos, teólogos e leigos trouxeram significativas contribuições para os textos das Bem-aventuranças, especialmente os relacionados ao andar a segunda milha, dar a outra face, ter fome e sede de justiça no sentido de ser justo e não permitir que a injustiça seja praticada, ser misericordioso e manso, etc. A tal ponto a contribuição atravessou fronteiras que hoje, um dos maiores expoentes da não violência e da aplicação radical das Bem-aventuranças é um sacerdote católico, John Dear, já nominado certa feita para o prêmio Nobel da Paz.
Lembremos que Jesus foi anunciado pelos anjos cantando “paz na terra” e que se apresentou depois da ressurreição dizendo “paz seja convosco”. Se recordarmos que na Bíblia a palavra paz” aparece 9.480 vezes na Bíblia, sendo 7.965 vezes no Antigo Testamento e 1.515 vezes no Novo Testamento. Diante disto, a insistência do tema no meio anabatista mostra uma faceta extremamente bíblica do movimento.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A REFORMA FOI SÓ ISTO?

Por pura pachorra, li um monte de artigos sobre a reforma, escritos nestes dias. A profusão deles se deve ao fato de que se está comemorando os 500 anos do movimento consolidado com Martinho Lutero e depois seguido por outros reformadores. No entanto, ao ler os artigos, uma questão me perturbava e uma certa indignação tomava conta de mim.
Tive a impressão de que estudei em outras fontes das que os escritores se basearam suas afirmações. A quase totalidade dos artigos não citava os pré-reformadores, gente que, em várias partes e locais, foi construindo um novo pensar que se consolidou na atitude de Lutero. Não havia uma só palavra sobre os Albigenses ou Cátaros, Valdenses, João Wycliffe, os Lolardos, João Huss, Savonarola
Muitos dos autores dos artigos que li louvava a coragem e lucidez do bispo alemão, falavam de Calvino, o reformador de Genebra e pouco ou nada falavam do terceiro reformador, o de Zurich, Zwínglio. Nada, absolutamente nada sobre a Reforma Radical, também conhecida como movimento anabatista. O anabatismo surgiu com a Reforma do século XVI, com a pregação da liberdade de consciência, a negação da guerra definindo-a como pecado, a negação do uso da violência, a dessacramentalização dos sacramentos, o batismo como ato de fé consciente, o sacerdócio universal de todos os crentes (diferindo da visão luterana), a prática da hermenêutica comunitária. Estas posições eram diferentes e críticas a LuteroCalvino e Zwínglio que mantiveram o baptismo infantil, a vinculação da igreja ao Estado e os sacramentos .
Georg BlaurockConrad Grebel e Félix Manz ansiavam por uma reforma mais radical e estabeleceram suas convicções no dia 21 de janeiro de 1525, fazendo-se rebatizar em local próximo a Zurique, na Suíça. Perseguidos pelos reformadores, Igreja Católica e reis, o movimento se espalhou pelo sul da Alemanha, Vale do Reno e Países-Baixos.
Percebe-se que a igreja moderna muito deve aos anabatistas. Foi com eles que nasceu a convicção de que a Igreja não pode se vincular ao Estado, a noção de Estado Laico tão cara ao movimento protestante, sem que lhe seja dado o devido crédito. A eles se deve a negação da guerra como forma de se promover a justiça e a paz, a eles se deve o conhecimento sobre as práticas de negociação e mediação em conflitos.
É verdade que nem tudo nos Anabatistas é louvável. Houve a figura de Thomas Muentzer que pegou em armas e liderou a guerra dos camponeses, houve quem, no arroubo de sua crença impediu a realização de batismos infantis. Mas também há coisas nada louváveis em Calvino, Lutero e Zwínglio e seus seguidores. No campo teológico, se se quer ser honesto, o anabatismo nunca produziu um sistema teológico próprio, mas se dedicou à eclesiologia, tomando conceitos emprestados de outros pensadores. Isto se explica pelas ferozes perseguições que sofreram, forçando-os a se mudar constantemente, sem contar a infinidade de líderes mortos.

Com isto, afirmo que a Reforma Protestante começou muito antes de Lutero, e foi muito além de 1516, pois teve frutos duradouros, mesmo com que perseguição e quase dizimação do movimento anabatista. Aos escritores dos artigos sobre os 500 anos da Reforma Protestante, sugiro que releiam os livros de história e se informem sobre o Anabatismo. Aos que promovem o culto da Reforma, sugiro que pensem que os Anabatistas também são reformados, no que pese as críticas de Calvino, Lutero e Zwínglio, todas fruto da reação às críticas que receberam.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Igrejas Históricas da Paz

Volto, depois de dez anos, à República Dominicana, país que já visitei mais de vinte vezes, em função de trabalho de educação teológica que aqui realizei, sendo diretor de um seminário. À primeira impressão, parece que muita coisa mudou, pois novas avenidas, viadutos e túneis se abriram para escoar o tráfego e os cortes de luz parecem menos freqüentes e mais curtos.

No entanto, quando entro pelo país adentro, especialmente indo em direção ao Haiti, percebo que as coisas continuam iguais ao que era e, talvez, em alguns lugares, ainda mais complicado. No domingo estive em um Batei (vila de haitianos ilegais que vem à República Dominicana para trabalhar nos canaviais) e conclui, falando com as pessoas, que as coisas continuam iguais e talvez piores. Hoje vou a outro Batei onde os moradores viviam do trabalho do corte da cana e que já não tem o que fazer porque a usina fechou. Sem trabalho e na condição de ilegais, não podem sair da vila onde vivem, com medo de serem capturados pelas autoridades.

Neste contexto, as Igrejas Históricas da Paz (Irmandade, Menonitas e Quáqueros) se reuniram para convocar uma Conferência que busque ações concretas para reduzir a violência, no marco da Década para Redução da Violência. A tarefa é hercúlea, as formas de violência são múltiplas, mas algo se deve fazer, ainda que seja plantar grãos de mostarda.

Historicamente estas três igrejas tem se dedicado a elaborar uma teologia da paz e a buscar formas concretas de implementá-la. Representantes destas igrejas foram responsáveis por várias ações mundiais de denúncia da guerra, qualquer que seja, como pecado. Muitas ações foram desenvolvidas para os objetores de consciência (jovens que se negam a servir ao exército por razões de consciência), formas alternativas de serviço durante a guerra (criou-se um hospital em San Juan, Porto Rico para atender aos feridos de guerra e os que lá serviam não seriam chamado às armas). Também há forte mobilização entre os membros das Igrejas Históricas de Paz pelo desarmamento das nações e pessoal. Membros destas Igrejas tem se notabilizado por serem estudiosos das técnicas de resolução de conflitos e mediação, tendo, inclusive cursos universitários voltados ao tema e vários trabalhando para a ONU e na mediação de conflitos internacionais.

A Conferência que agora se convoca tem por objetivo reunir estas experiências pela paz na América Latina, coordenar ações e disseminar a teologia da paz entre outras igrejas e movimentos, de tal forma que a paz deixe de ser sonho e se torne realidade nas ações diárias das pessoas.